Em agosto de 2020, com intensa participação do Diretório Acadêmico Dom Oscar Romero, o ISTA realizou mais uma edição de seu Simpósio de Filosofia, Teologia e Ciência da Religião, com o tema "Vidas Negras Importam". A iniciativa atendia a um apelo muito vivo naquele momento, mas cuja relevância permanece - e permanecerá, enquanto ainda convivermos com as marcas profundas do racismo estrutural no Brasil.
Dois anos depois, o ISTA assumiu formalmente a curadoria do Projeto Terra de Quilombos, com seu precioso acervo bibliográfico e sua contundente responsabilidade na construção de relações étnico-raciais mais justas e fraternas.
Nossa gratidão àqueles/as que ofereceram às comunidades esse poderoso instrumento de afirmação identitária e que, depois, confiaram ao ISTA um presente tão precioso. Que o "Terra de Quilombos" nos ajude na tarefa pendente de reconciliação com esse patrimônio cultural e de reparação dos danos causados, no passado e no presente, por toda forma de discriminação. Afinal, de tantos modos, ontem e hoje, seguimos todos em 'terra de quilombos'.
Este Projeto foi desenvolvido no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (DCP/FAFICH/UFMG) em parceria firmada com o INCRA/NEAD - órgãos do Ministério do Desenvolvimento Agrário. O objetivo era a análise e sistematização de laudos antropológicos das comunidades quilombolas do Brasil lançando mão de informações complementares dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTIDs) e outras referências bibliográficas. Esta era uma histórica reivindicação das comunidades quilombolas poisos RTIDs (uma das partes desses relatórios são os laudos antropológicos) são peças técnicas com uma expertise acadêmica que, em muitos casos, não permitia o uso dos dados pelas próprias comunidades. Desse modo, os livretos publicados na Coleção intitulada “Terras de Quilombos” enfrentou o desafio de tornar acessíveis as principais informações dos RTIDs. Ademais, os gestores de políticas públicas e a sociedade civil, em geral, ao terem acesso a um material dessa natureza, compreendem melhor a questão do direito quilombola garantido na Constituição Federal de 1988 (art. 68 do ADCT) que afirma: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir lhes os títulos respectivos” e reafirmado pelos arts. 215 e 216 - que reconhecem a legitimidadedos modos de criar, fazer e viver dos afro-brasileiros e que, posteriormente, foram adequadamente regulamentados pelo Decreto 4.887/2003.
Oslivretos foram concebidos, até o formato final, por uma ampla equipe interdisciplinar que contou com a participação, além da já referida ciência política, com pessoas da antropologia, educação, letras, história, psicologia, direito e filosofia. Ao final de cadalivreto é possível identificar o autor da escrita, bem como a ampla equipe que participou na construção coletiva de cada narrativa. Todos os livretos seguiram uma orientação comum em sua formulação, tendo como referência as seguintes informações sobre cada comunidade:
(a) histórico de ocupação;
(b) mapa de localização;
(c) caracterização do território;
(d) principais conflitos em questão;
(e) atividades produtivas essenciais e potenciais;
(f) modos de ser e viver do grupo;
(g) saberes e fazeres da comunidade;
(h) principais desafios enfrentados pela comunidade;
(i) uma palavrada comunidade, que se constitui em um depoimento original de um/a oumais membros da comunidade sobre sua história e demandas atuais.
Desse modo, os livretos contribuíram para a formulação de uma linguagem pública sobre as comunidades quilombolas com a elaboração, publicação e impressão de 72 livretos. O objetivo principal é que através do acesso a esses livretos as comunidades quilombolas possam finalmente ter suas histórias contadas e reconhecidas como patrimônio histórico e cultural brasileiro e, assim, possam ter seus direitos de criar, fazer e viver respeitados, assim como a efetivação da titulação de seus territórios ancestrais.
A colonização do Brasil teve como uma de suas faces a escravização do povo africano por 353 anos (1535-1888). A escravização terminou oficialmente em 1888 com a Lei Áurea, mas sabemos que uma série de fatores fez com que o preconceito e a ativa discriminação contra o povo negro fossem reeditados em múltiplas formas, persistindo até hoje através do racismo estrutural.
Uma das consequências mais nefastas do projeto colonizador foi o apagamento das histórias ligadas ao povo negro como, por exemplo, a história da África e as histórias que são emblematicamente representadas pelas diversas trajetórias dos quilombolas do Brasil, que se constituíram em uma forma de fundação da liberdade e construção da autonomia social, política, econômica e cultural nas terras brasileiras e que os indígenas já conheciam e praticavam secularmente tão bem!
Assim, conhecer os quilombos do Brasil é ter acesso às histórias que nos foram negadas, e relembrando e ressignificando aquela antiga frase: não há como amar o que não se conhece!Portanto, a seguir, convidamos você a entrar por essas portas e abrir as janelas para outros olhares. Você terá acesso a inúmeras histórias dos/das quilombolas, com suas singularidades, seus modos de criar, fazer e resistir. Desejamos que esse conhecimento lhe desvele os horizontes para a compreensão de que a garantia do direito quilombola ao território não é algo apenas benéfico para eles, mas é a defesa de um patrimônio de todo o povo brasileiro. Ademais, tal conhecimento tem a potencialidade de nos tornar não apenas, progressivamente, menos racistas, mas a entendermos que as lutas antirracistas são de todos/as nós!
Boas leituras e olhares para outros belos horizontes!