Pontode partida:
referencialidadedialética / dialógica entre Igreja Católica e Educação Católica
1. A Educação Católica éfilha e herdeira da Igreja Católica, em suas múltiplas modalidades de presença,de acordo com as exigências de cada tempo e lugar. Se, por um lado, podem-seestabelecer juízos bastante críticos sobre muitos aspectos dessa presença,sempre historicamente situada, é necessário reconhecer a importância decisivada presença da Igreja Católica no Brasil, ontem e hoje. E a Educação Católica,ao lado de tantas iniciativas sociais e humanitárias, é uma preciosa herançadessa presença.
2. Há, pois, uma analogiadialética / dialógica entre Igreja Católica e Educação Católica. De modo que asqualidades eclesiais gestam as preciosidades mais significativas de nossasinstituições de ensino; mas também as perdiduras eclesiais podem determinar osdesbussolamentos mais graves de nossas escolas e universidades. Em suma: muitode nossos dilemas educacionais são legitimamente educacionais, mastambém e de modo não menos marcado dilemas eclesiais.
3. Palavras como perdidura,desbussolamento, dilema e tantas outras já se tornaram nossas companheirasao longo desses dois longos anos da pandemia de COVID-19. Mas, talvez, essequadro seja o resultado catalisado de processos, certamente complexos, já emcurso antes de março de 2020. E que, com a concretude tão irreverente dapandemia, tenham se mostrado para além de nossa aparente calmariainstitucional. Não seriam, pois, algo propriamente novo, mas novo em seu modode se mostrar.
4. Este olhar de um “conhecimentoatravés / atravessado” (dià-gnostikós, menos em sentido clínico e maisem sentido eclesial e pastoral) pretende se dirigir àquele trinômio que resultada relação dialética / dialógica entre as realidades eclesiais e educacionaisconfessionais: Igreja – Sociedade – Escola. Igreja como polo primáriodessa relação dialética, de onde colhemos as categorias de análise; Sociedadecomo horizonte e ambiente do diálogo público, onde se situam nossasinstituições; Escola como polo derradeiro dessa relação, onde nossosconflitos e dilemas cotidianos se deflagram, como resultado mas também comoproposta.
I.IGREJA
Crise eclesiológica: omagistério de Francisco e os cenários de Igreja
5. Está disponível nainternet um documentário francês chamado: “A Guerra Perdida do Vaticano II”[1]. Um filme provocador e queabre boas oportunidades de discussão sobre aspectos eclesiológicos importantes.Em sua cena final, aparece a noite em que se realizou a vigília da JMJ 2011, emMadrid, quando todos os presentes são atingidos por uma forte ventania e,depois, pela intensa tempestade. No centro do vídeo, o papa cercado deguarda-chuvas que, inutilmente, tentam proteger da intempérie. A imagem é pordemais emblemática daquele momento eclesial.
6. Sem juízos de valor oucomparações superficiais entre os pontificados – não é disso que se trata –, énecessário reconhecer que a publicação de Evangelii Gaudium (2013), comouma “carta programática” do pontificado de Francisco, seguida da tríade LaudatoSì (2015), Amoris Laetitia (2016) e Fratelli Tutti (2020),intercaladas com uma intensa produção magisterial, fundam um cenário eclesial /eclesiástico muito diferente daquele anterior, sobretudo no que se refere aovigor missionário, ao desentrincheiramento das relações entre Igreja eSociedade e ao apelo testemunhal de fidelidade ao Evangelho. Ao menos, do pontode vista magisterial.
7. A prática eclesial,porém, se revela muito mais modesta; quando não frontalmente contrária a essesinfluxos magisteriais. Embora algumas expressões de Francisco tenham ganhadocidadania eclesial, como “Igreja em saída”, “periferias existenciais”,“fraternidade humana” e “ecologia integral”, perdura majoritariamente uma pastoralestruturalmente estagnada e voltada à manutenção institucional, às vezesatravessada mais por querelas moralistas ou fundamentalistas do que pelosapelos da justiça e da solidariedade. Temos, neste momento, uma dicotomiaradical, quase cismática, entre o magistério de Francisco e certos cenárioseclesiais bastante abundantes.
8. Alguns apelos dessemagistério de Francisco nos tocam diretamente, como instituições que sepretendem dedicadas a uma educação verdadeiramente católica. Poderíamos elegertrês: a envergadura pastoral, para além da “dispensação alfandegária dossacramentos”; a competência e a transparência na gestão de bens, que em últimainstância são eclesiásticos e por isso mesmo governados segundo princípiosconfessionais e voltados àquelas finalidades últimas dos bens da Igreja; e a relevânciacarismática do testemunho da fé. São inquietantes as provocações.
II.IGREJA – SOCIEDADE
Crise do caráter e dolugar público da fé: ateísmo religioso | pietismo ateu
9. A Cristandadedesmoronou, ainda que muitos insistam em fazer morada sob algumas de suasruínas remanescentes. E desmoronou porque sua pedra angular era a hegemonia dapalavra da fé, como instituinte do debate público, quando pronunciadavalidamente pelas instituições cristãs. E, categoricamente, isso não existemais. De modo que uma correta interpretação do cenário religioso atual exigecategorias mais complexas que um simples retorno tradicionalista. Talvez umareação à relegação moderna da fé à vida privada. Talvez, mas não só.
10. Naquilo que umbem-humorado professor de teologia pastoral chamava de “arcaico-fashion”,talvez esteja uma chave hermenêutica válida. Assistimos a um retorno a antigasposturas, que se pretendem fieis à Tradição, mas que se revelam bastantediferentes em seus efeitos eclesiais e sociais: como se a opulência das vestesdissessem a profundidade da identidade, como se a formalidade da rubricadissesse a verdade da liturgia e a sinceridade do culto, como se a afirmaçãoindefectível do dogma dissesse a integridade da fé, como se a afirmação rígidada moral dissesse a irrepreensibilidade da vida, como se a prática reiterada dapiedade dissesse a intimidade desconcertante da oração. Os gestos são conhecidose remontam à memória religiosa coletiva. Mas o fenômeno é novo e trazconvicções distintas, às vezes inconfessadas, por aqueles que os praticam.Longe de ser simples, exige acurada reflexão, sem conclusões demasiadoapressadas.
11. Paralelamente, ascategorias da fé se veem (novamente) sequestradas por projetos políticos. Equanto mais pretensioso for o projeto político (inclusive o pretencioso projetototalitário de destruição da política), mais as categorias totalizantes da fé eda religião se tornam irresistivelmente sedutoras e irrenunciavelmente estratégicas.Não deveria surpreender, portanto, que determinadas personagens políticas (ouapolíticas), partidos políticos (ou milícias pseudopolíticas) e afirmaçõespolíticas (ou degradações do discurso político) conquistem em grande parcela dapopulação uma fé e uma adesão com características de fé religiosa.
12. Do ponto de vista darelação entre Igreja e Sociedade, uma consequência visível é a constituição degrupos pretensamente “fidelíssimos”, mas cuja pertença religiosa em nada toca opatrimônio da fé oferecido pelas Igrejas. Ou mesmo Igrejas que perdem de vistaos referenciais eclesiológicos de sua existência e de suas práticas. Ou ainda,grupos para os quais a fé religiosa se mostra na formalidade da pertença e namilitância ideológica, mas que dispensa aquela experiência religiosa quechamaríamos “fé”, em sentido estrito. Uma piedade radical, é verdade, mas quenão se relaciona necessariamente ao Deus da tradição bíblico-cristã (ou mesmose opõe frontalmente a essa Tradição), em seu exigente e reiterado compromissode reconhecimento da alteridade, de abertura à solidariedade e de compreensãoontológica a partir do amor, manifesta em práticas de fraternidade e dejustiça. Uma piedade ateia, ou um ateísmo religioso, como quisermos.
III.IGREJA – SOCIEDADE – ESCOLA
Crise carismática: originalidadeda confessionalidade x exigências de mercado
13. Esse cenário social eeclesial chega às nossas instituições de várias formas. Ainda que sob risco degeneralização, duas poderiam ser suas principais expressões desse embate, comcaracterísticas bem distintas: uma na educação básica e outra no ensinosuperior. A separação é apenas didática, pois essas duas expressões seinterpenetram e se retroalimentam.
14. Na educação básica,tornou-se comum a exigência por parte de muitas famílias de uma “instruçãotradicional”, tanto da fé quanto dos costumes. Nos últimos anos e em várioslugares, foram numerosos os embates entre escola e famílias em torno dequestões morais e políticas: identidade sexual e gênero, política pública e serviçosemergenciais de enfrentamento da pobreza, políticas se combate ao racismo eoutras formas de discriminação são bons exemplos, dentre tantos outros. Paraessas famílias, esse seria o papel da escola confessional, por força de suaconfessionalidade.
15. No ensino superior, poroutro lado, percebe-se certo apagamento da memória confessional dasinstituições. Na guerra pela sobrevida e em meio às urgentes revisõesinstitucionais em vista da viabilidade, o caráter confessional tornou-sesecundário – seja para quem escolhe nossas instituições para sua formação, sejapara quem trabalha nelas, seja para nós, que as governamos. Ou ainda, aconfessionalidade se mantém em práticas de menor alcance, que muitas vezesfavorecem uma vivência sectária da fé, quase na marginalidade do cotidianoacadêmico.
16. Novamente: sãocenários aproximados e generalizantes, que na prática se mesclam no cotidianoinstitucional. Mas que, mesmo diferentes, têm em comum a mesma lacuna: a falta declareza na expressão e na compreensão do significado e das consequências denosso caráter confessional. Por um lado, a Educação Católica não se identificacom a proliferação de fundamentalismos religiosos cristãos; por outro, nãocoaduna com um esquecimento da memória de sua tradição, simplesmente alinhandonossas escolas às práticas do mercado e aos objetivos de uma educação meramenteinstrucional ou tecnicista.
Novoponto de partida:
Urgência do caráteriniciático | querigmático da presença carismática
17. O mercado educacionaltem mudado rápido demais. Mas, com convicção: a sobrevivência no mercado nãojustifica, por si, a existência de nossas instituições educacionais. A buscapela excelência já nos diferencia de muitas propostas educacionais do mercado,bem sabemos, sobretudo neste momento de uma verdadeira desconstrução do papelsocial e estratégico da educação na elaboração de um projeto de nação. Mastambém conhecemos iniciativas educacionais tão sérias e comprometidas quanto asnossas; grupos tão bem organizados e devotados à excelência quanto nós; instituiçõestão bem intencionadas e conscientes de seu papel social quanto as nossas. Oque, pois, justifica nossa relevância?
18. Urge recuperarmos (oureinventarmos, ou redescobrirmos, ou novamente nos convencermos de) umdiferencial que valha a nossa credibilidade, num cenário educacional tãocomplexo. E, segundo nossa história de instituições confessionais, essediferencial passa pela formação (verdadeira, ampla, integral etc.) a partir da comunicaçãode um carisma – de modo credível e relevante, exigindo de nós as melhoresenergias e os mais sinceros e criativos esforços. E nossa insistência, às vezesexagerada e até violenta, na figura de um fundador ou em expressões meramenteexternas ou até artificiais, apenas confessam a fragilidade de nossa identidadecarismática. Em outras palavras: ou o carisma se manifesta em nossosorganogramas, em nossos critérios de contratação e admissão, em nossasplanilhas orçamentárias, em nossas políticas institucionais, em nossos projetospedagógicos, em nossas matrizes curriculares e em nossas relaçõesprofissionais; ou nós já o renunciamos e nos colocamos no mercado,desalentadamente, disputando de igual para igual. E seria muito tristerenunciar ao nosso diferencial carismático – ele, que vale a nossacredibilidade – em vista de qualquer outro objetivo institucional.
19. Somos gente de fé –assim se supõe. E, por isso mesmo, somos capazes daquela esperança que nosmobiliza inteiramente e nos torna capazes de crer que, feita a longa travessiadesses tempos difíceis, a história dirá quais projetos educacionais foramrealmente capazes de formar verdadeiramente. Temos razões carismáticas paracrer que saberemos discernir, sem medo de apostar nesse nosso diferencial.
1 Mestre em Teologia.
Reitor do Instituto SantoTomás de Aquino – ISTA.
Vigário Provincial eSecretário da Formação dos Capuchinhos em Minas Gerais.
2 La guerre perdue duVatican II, dirigido por Patrick Benquet, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8m6zh6uYMlI.Acesso em 12 jun. 2022.