Introdução
1.Esta reflexão[1], oferecida à CRB Minas porocasião do Encontro de Formadores e Formadoras 2022, pretende lançar um olharteológico (e por isso mesmo eclesial e formativo, tanto analítico quantopropositivo) às realidades oferecidas como objeto de observação e discussão: osprocessos formativos para a Vida Religiosa Consagrada (VRC), a partir dosprofundos impactos sofridos ao longo desses dois anos de pandemia da COVID-19.
2.A hipótese da qual parte esta reflexão, escolhida mais ou menos arbitrariamente,mas em acordo com um coro de especialistas em diversas áreas, poderia serformulado deste modo: a pandemia talvez não tenha inserido tantos elementos propriamentenovos às realidades humanas (sociais, políticas, econômicas, religiosas,formativas etc.) nas quais se deflagrou, mas talvez tenha catalisado(acelerado, facilitado, culminado) processos já em andamento, realçando (expondo,desmascarando, escancarando) elementos já presentes nesses processos, noperíodo imediatamente anterior. Ou seja, a pandemia talvez tenha exibido, com aconcretude das urgências, sempre mais convincentes que a coerência dosdiscursos, alguns sintomas de vida e de morte que já faziam parte de nossa vida– também na formação religiosa. Haveria, pois, entre o “hoje ainda-pandêmico”e o “ontem pré-pandêmico” uma relação de continuidade fundamental, ainda querupturas pontuais tenham sido e ainda sejam experimentadas. De modo que do“amanhã ainda-pandêmico ou pós-pandêmico” não se pode esperar, com suficienteresponsabilidade, uma realidade radicalmente diferente daquela que temosgestado hoje.
3.Outro dado fundamental, já sabido desde muito e explicitado por diversas vezesnos documentos magisteriais sobre a VRC, mas escancarado ainda mais pela pandemia,é este: os dilemas da “Formação Inicial” refletem, com característicaspróprias, os dilemas da “Formação Permanente”[2]. Não que haja entre esta eaquela uma simples relação de causa-efeito. A vida é sempre mais complexa doque causalidades simplistas. Formação Permanente e Formação Inicial são realidadesanálogas, que se retro-alimentam. Mas essa relação de analogia e dereciprocidade tem na Formação Permanente seu polo primário, uma vez que ela é aguardiã daqueles traços carismáticos nos quais são inseridos/as os/asformandos/as em seu processo de iniciação à VRC. Não tanto pelas inúmerasconferências e longas aulas às quais os/as formandos/as são submetidos, mas sobretudopelo cotidiano das posturas e palavras, expressas ou silenciosas, explícitas ouimplícitas, que compõem o ambiente formativo. Constatar as lacunas e os dilemasda Formação Inicial deveria nos provocar a uma procura igualmente minuciosa deelementos análogos na Formação Permanente.
4.A partir dessas duas considerações, é possível reconhecer pelo três “camadas”de desafios revelados pela pandemia, nutridos na Formação Permanente erefletidos na Formação Inicial, à semelhança de quem cava uma busca emcrescente profundidade. Chamam-se “desafios” porque, uma vez descortinados comolacunas ou como incompletudes, imediatamente se propõem como caminho a seguir:
I. Na superfície: o desafio dereconhecer o verdadeiro lugar da “Formação” na VRC e, por consequência, apossibilidade de construir uma genuína “Formação Permanente” capaz de produzir econservar a maturidade carismática do Instituto;
II. No meio: o desafio dacontinuidade orgânica nos processos formativos, de modo que possam cumprir seupapel iniciático, sempre pendente de conclusão, com os desafios próprios decada etapa e em progressivo amadurecimento, tanto na Formação Inicial quanto naPermanente;
III. Na profundidade: o desafio deformar a partir de uma compreensão dinâmica da identidade e do carisma,comunicando-o de maneira credível e em diálogo com os apelos do tempo presente.
I.Desafio de uma verdadeira “Formação Permanente”
5.É comum encontrar na Formação Permanente relatos de lembranças muito dolorosasda Formação Inicial. Assim como não é raro encontrar em certos gruposreligiosos anedotas com a interpretação (que podem encobrir sob o véu do riso avivência real) dos votos perpétuos como “carta de alforria” ou “certidão demaioridade”, a partir da qual “não se presta contas da própria vida a ninguém”.Quase como se os votos perpétuos dispensassem a vivência dos votos. O que tambémpode encobrir uma compreensão negativa dos votos religiosos, predominantementerestritiva e proibitiva. O problema é grave e revela simultaneamente doisequívocos: a compreensão da Formação como algo provisório e passageiro (assimcomo acontece na Catequese de Iniciação), que por sua vez delega à FormaçãoInicial um papel violento de “en-formação”, de “con-formação”, ou de meraadequação do/a candidato/a a determinados comportamentos prescritos[3].
6.Falta, nesses casos, a compreensão de que o processo de Formação se destina atoda a vida, adequando-se aos desafios de cada idade. Tal qual existe umprocesso de iniciação carismática para a primeira profissão, deveria haver umprocesso igualmente de iniciação carismática para o envelhecimento, por exemplo;e tal qual se prepara carismaticamente o/a candidato/a para assumirdeterminados papeis institucionais, do mesmo modo se deveria prepará-lo/acarismaticamente para deixar esses papeis. O resultado de uma compreensão tãoestreita do processo formativo pode ser a manutenção – na Formação Inicial, mastambém na Permanente – de procedimentos de infantilização, sofridamenteirrealizada, calçada sobre a frustração de ideais individuais ou sobreexercícios perversos da autoridade. A clínica psicológica ou psiquiátrica, mastambém os ambientes de formação acadêmica desses/as jovens, puderam verificar,ao longo da pandemia, a incidência desse fenômeno.
7.Quem não se sentiu “perdido” durante a pandemia talvez seja o mais perdido detodos, pois nem se deu conta do tamanho da “perdidura”. No fundo, a atual“perdidura” da Formação pode revelar uma perdidura da própria missão dosInstitutos de VRC, em sua autocompreensão e sua organização, expresso inclusivena perdidura de sua apostolicidade e de sua atuação pastoral. A pandemiarevelou, em larga medida, nosso despreparo para lidar com situações novas, comnovos cenários de Igreja e paradigmas que não convirjam para dispensação exopere operato dos sacramentos. Mais que nunca, urge uma Formação capaz depreparar agentes da VRC para lidar com a complexidade do mundo, seja pelo rigorda academia e da ciência, seja pela sensibilidade e agudeza da compaixão.
II.Desafio de continuidade nos processos formativos
8.Ainda que não se dispensem os expedientes explicitamente formativos epedagógicos, a vida inteira dos Institutos de VRC é Formação. Um “itinerárioformativo” ou um “manual pedagógico” ou uma “Ratio Formationis” não podeser um texto alheio ou alheado da vida cotidiana. Em última instância, se orientadospor esses textos fundamentais, os processos formativos se constroem na própriaorganização dos serviços, na delegação das funções, na saúde das relações, nograu de confiança estabelecido, na coparticipação e na colegialidade dasdecisões, na capacidade de ouvir e tomar a sério os processos de amadurecimentodaqueles/as que vêm a nós, na coerência entre aquilo que se exige dos/ascandidatos/as e aquilo que os próprios membros do Instituto oferecem comotestemunho.
9.Faltam, em muitos processos formativos, diretrizes carismáticas claras, expressasde modo orgânico nas etapas que se sucedem. Isso não significa apenas aprodução de documentos logicamente coerentes, mas a manutenção expressa de umaorientação fundamental para todo o processo formativo, em que os traçoscarismáticos e os objetivos de cada etapa estejam formulados de maneira tãoclara e concreta, a ponto de serem acompanhados de maneira personalizada eavaliados de forma objetiva e responsável. A pandemia expôs o quanto certosprocessos formativos estavam mais centrados em determinadas práticas pontuaisdo que em orientações fundamentais, capazes de guiar em momentos de crise e desuspensão das rotinas “normais” das casas de formação[4].
10.Urge um diálogo com pedagogias abertas, capazes de tocar os anseios das novasgerações[5]. É certo que o decréscimodo número de vocações à VRC é um fenômeno complexo e multicausal. Mas um dilemacentral nesse problema se refere exatamente a um entrave de comunicação e depedagogia. Não raro, nossos processos formativos são mais adeptos da “pedagogiado ensino” ou da “pedagogia da aprendizagem”, do que da autêntica “pedagogia dainiciação”. A vocação não é uma lição que se aprenda formalmente, mas dialogacom a pessoa inteira, em suas luzes e sombras, sonhos e medos, dons e carências.Compreender as dobras do coração humano, sem rechaçar nada daquilo queautenticamente lhe constitua, e dialogar com as ambiguidades políticas eculturais do nosso tempo exigem mais do que simplesmente repetir de memória aspalavras do/a fundador/a ou as prescrições constitucionais.
III.Desafio da construção dinâmica da identidade
11.Existem assessores/as especializados/as em “redescobrir” ou “reinterpretar”carismas. Pois pode acontecer que um Instituto de VRC se veja tão distanciadodos ideais originários que, em algum momento, se pergunte pela importância desua existência e a relevância de seu carisma. Isso pode acontecer quando ocarisma deixa de figurar como a radicalidade original de um testemunhopara se identificar simplesmente com a especificidade de um trabalho ou com oexercício de uma função litúrgico-ministerial. Durante a pandemia, muitosnos perguntamos, com razão, quais seriam os apelos carismáticos desse tempo eem que eles dialogavam com a especificidade de nossos carismas. Uma perguntanão feita por todos, infelizmente, esquecendo-se de que relevância do carismapassa pela clareza de sua singularidade e a abertura de sua criatividade,diante de necessidades não fictícias ou de escritório, mas aquelas reais,emanadas das dores do mundo.
12.Na Formação Permanente, a reclamação mais comum – no confessionário e fora dele– refere-se à tensão que se estabelece entre: de um lado, o imperativo dainstitucionalização e da manutenção das obras da congregação ou da gestãoadministrativa do Instituto; de outro lado, o encantamento da missão e das experiênciasfundantes do próprio Instituto. “Tornei-me religioso/a para isso e não paraaquilo” – dizem muitos/as. Embora a manutenção das estruturas sejam necessáriae hoje cada vez mais exigente, os processos de Formação Inicial estãoorientados majoritariamente a qual direção? E, mesmo a formação acadêmica,profissional ou técnica é assumida em perspectiva carismática? Aquilo quedizemos ser prioridade não passa só pelo cumprimento formal das “ordenaçõescapitulares”; uma prioridade se comprova pelo espaço que ocupa em nossasagendas, em nossas cartas obedienciais e em nossas planilhas orçamentárias.
13.A pandemia tem sido um desfile de inseguranças, quando vemos ruir muitas denossas garantias conceituais, paradigmáticas e institucionais (também políticase ideológico-partidárias). Talvez por isso, mas também somado à potencializaçãoda exposição midiática, tem sido também o desfile de novas e velhas formas de clericalismosexacerbados, irmanados com autoritarismos extravagantes, quase sempre ao ladoou encobrindo incoerências radicais. Uma teologia ministerial mal formulada, aolado de uma teologia da vocação ou da VRC margeada de distorções, geram ocenário clericalista denunciado reiteradamente pelo magistério do PapaFrancisco, mas ainda constatável em muitos de nossos ambientes formativos(também acadêmicos e pastorais). Como consequência desse cenário, ainda maisdurante a pandemia, o “abuso” deixou de ser uma categoria teórica e fechada aoestreito círculo das patologias sexuais extremas, sempre entendidas como algodistante, para se revelar como constitutivo de muitas relaçõesinstitucionais e de autoridade, em torno do poder, do dinheiro e tambémdo desejo e da sexualidade. Tematizar essas problemáticas e preveni-las parecemcondições indispensáveis para um cenário de VRC mais saudável num mundo pretensamentepós-pandêmico.
Provocaçõesfinais
14.Se é verdade que a pandemia não impôs tantas novidades fundamentais, masexpôs elementos presentes nem sempre confessados ou tomados com acuradaseriedade, então temos muito o que fazer. As três “camadas” de desafios talvezrevelem três “camadas” de esforços: formação (compreendida em sentido amplo),continuidade (compreendida sobretudo como coerência) e identidade (compreendidacom dinamicidade). Se nos mantemos fiéis a nossa vocação, qualquer dessesesforços será empreendido sempre com convicções pessoais, mas alimentados noseio da comunidade/fraternidade. E, se queremos ser religiosos/as em meiocomplexidade desse mundo, exigirá de nós formação sólida, capaz da agudeza dopensamento e da grandeza de coração.
1 Mestre em Teologia(2017). Vigário Provincial e Secretário da Formação dos FranciscanosCapuchinhos em Minas Gerais (2019). Reitor do Instituto Santo Tomás de Aquino(2020).
2 Nota metodológica: este texto se constitui,despretensiosa e simplesmente, como uma “re-flexão”: o esforço de, dobrando oolhar sobre as realidades já conhecidas e costumeiras, como que mirando seureflexo, buscar reconhecer dados despercebidos ou desconsiderados pelasurgências cotidianas. Como fruto da observação refletida, não tem pretensão detratar exaustivamente os temas, tampouco de elaborá-los com a exatidãoconceitual da academia. Trata-se, pois, de um material de trabalho, maisdisposto a provocar discussões do que a oferecer respostas definitivas.
3 Parece-me fundamental explicitar essa relaçãoentre “Formação Inicial” (da admissão à VRC à Profissão Perpétua dos Votos) e“Formação Permanente” (continuada durante todo o período de pertença aoInstituto Religioso, em suas várias faixas etárias). Abrogar-nos o nome de“formadores/as” pode, por um instante, nos fazer esquecer o quanto também nósestamos diretamente impactados pelos dilemas dos processos formativos, tanto emnossos próprios processos iniciáticos sempre inacabados na Formação Permanente,seja nos processos daqueles que se põem ao nosso cuidado na Formação Inicial.É, pois, curioso que muitos “itinerários formativos” dos Institutos partam daFormação Inicial, considerar sua analogia à FormaçãoPermanente. Ou mesmo desconsidere a Formação Permanente nos esforços formativoscotidianos.
4 Considerem-se aqui, porexemplo, as dificuldades daqueles/as que, às vezes saindo do seio familiar pelaprimeira vez, deparam-se com ambientes institucionais sufocantes, com pouco ounenhum espaço para a espontaneidade e a liberdade de expressão daquilo quetrazem. Não raro em cidades maiores, desconhecidas, os/as formandos/as sedeparam com uma rotina nova, com um modo de oração novo, com relações ditadas apartir de valores e critérios novos, diante do estudo de conteúdos novos. E, aofazer coincidir com o ambiente doméstico da “casa de formação” os espaços devida pública (como a faculdade, a pastoral, o trabalho...), a pandemia deu amuitos Institutos de VRC características ainda mais marcantes de “InstituiçõesTotais” (onde toda a atividade individual se realiza em ambientesinstitucionais e se confunde com as finalidades da própriainstituição. Vasta bibliografia compara a rotina dos conventos à deinstituições prisionais ou hospitalares, por exemplo, em que toda a vida dapessoa se realiza entre as prescrições institucionais).
5 Nesse sentido, parece estranha adecisão de devolver os/as formandos/as a suas famílias – suspendendo o processode Formação Inicial – durante a pandemia. Certamente, vários fatores explicamessa decisão, caso a caso, tomada em momentos de grande incerteza: fatoreseconômicos e de segurança sanitária são apenas dois exemplos, dentre vários(embora a chegada e a manutenção desses/as jovens à casa da família tambémtenha impactos econômico e sanitários). Mas, no fundo, uma decisão dessanatureza pode expressar um dado preocupante: que a Formação Inicial existeapenas em torno da formação acadêmica, quase como acontece em certos ambientesseminarísticos diocesanos. E que, cessada a atividade acadêmica,os/as formandos/as não precisam mais permanecer no ambiente formativo.Identificar e delimitar a Formação Inicial apenas em torno da academiafilosófica ou teológica (ou outra) é uma redução drástica, que desfiguracompletamente o processo formativo carismático.
6 A expressão “Novas Gerações” játem cidadania garantida nos círculos de VRC, no Brasil. E é mérito da CRBprovocar uma discussão tão abrangente e significativa em todo o país. Énecessário, entretanto, cuidar para que também os valores defendidos peloprojeto “Novas Gerações” não se cristalizem. Afinal, as “novas gerações” doinício dos anos 2000 são muito diferentes das “novas gerações” deste início dosanos 2020.
